Por décadas, Hans Asperger (1906–1980) foi reverenciado como o médico austríaco que identificou uma forma particular de autismo, hoje conhecida como Síndrome de Asperger. Sua pesquisa publicada em 1944 só ganhou reconhecimento internacional a partir dos anos 1980, transformando seu nome em símbolo de avanço na compreensão do espectro autista.
No entanto, novas investigações históricas revelaram um lado obscuro da trajetória de Asperger: sua colaboração ativa com o regime nazista e a cumplicidade com práticas de higiene racial e eutanásia infantil promovidas pelo Terceiro Reich.
Hans Asperger nasceu em 18 de fevereiro de 1906, em Viena, Áustria. Formou-se em medicina e especializou-se em pediatria, concentrando seus estudos no comportamento de crianças que apresentavam dificuldades de interação social e comunicação, mas que, ao mesmo tempo, demonstravam habilidades cognitivas elevadas.
Seu trabalho pioneiro descrevia crianças que eram socialmente isoladas, altamente focadas em interesses específicos e com dificuldades em interpretar sinais sociais — um perfil que hoje é reconhecido dentro do espectro autista.
O que poucos sabiam, até recentemente, era que durante o período em que realizava suas pesquisas, Asperger trabalhava em plena Viena nazista e manteve relações estreitas com o regime de Adolf Hitler.
Durante muitos anos, a narrativa oficial apresentava Hans Asperger como um médico que teria protegido crianças vulneráveis das políticas nazistas, especialmente das práticas de “eutanásia” que exterminavam pessoas com deficiências.
Essa versão foi reforçada pela ausência de investigações profundas sobre seu passado e por declarações feitas pelo próprio Asperger, que alegava ter se mantido distante das ideologias do nacional-socialismo. Assim, criou-se a imagem de um médico humanitário, um opositor silencioso do horror.
Contudo, pesquisas recentes jogaram nova luz sobre a sua atuação, revelando uma realidade bem diferente.
Em 2018, o historiador Herwig Czech, da Universidade de Viena, publicou um estudo revolucionário na revista Molecular Autism, baseado em documentos inéditos, arquivos pessoais de Asperger e relatórios médicos escritos por ele próprio.
Segundo Czech, Hans Asperger não apenas se beneficiou profissionalmente do regime nazista, como também foi um colaborador ativo. Entre as revelações mais chocantes, destacam-se:
Filiação e participação em organizações afiliadas ao partido nazista.
Apoio público às políticas de higiene racial promovidas pelo governo de Hitler.
Colaboração direta com o programa de eutanásia infantil, indicando crianças consideradas “incuráveis” ou “não adaptáveis” para instituições como a clínica Spiegelgrund, famosa por eliminar crianças consideradas “indignas de viver”.
A Spiegelgrund foi um dos centros de eutanásia infantil mais notórios do regime nazista. Crianças com deficiências físicas, mentais ou comportamentais eram enviadas para lá e, muitas vezes, mortas por métodos cruéis, sob a justificativa de “piedade” ou “purificação genética”.
Hans Asperger recomendava pacientes para a Spiegelgrund, alegando que a transferência era “necessária” para o bem da sociedade. Essas crianças, na visão de Asperger e do regime, eram consideradas “sem perspectiva de desenvolvimento” e, portanto, dispensáveis.
As revelações sobre o envolvimento de Hans Asperger com o nazismo provocaram um intenso debate ético na comunidade médica e entre ativistas do autismo. Afinal, como lidar com o fato de que o nome de uma condição amplamente estudada e reconhecida mundialmente está associado a práticas de extermínio?
Muitos sugerem que seja repensado o uso do termo Síndrome de Asperger, preferindo referir-se ao diagnóstico simplesmente como autismo de alta funcionalidade ou apenas como Transtorno do Espectro Autista (TEA), evitando homenagens indiretas a uma figura associada a crimes contra a humanidade.
De fato, nos manuais mais recentes de diagnóstico, como o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição), a Síndrome de Asperger foi incorporada como parte do espectro autista, sem categoria separada. Essa mudança reflete tanto avanços no entendimento científico quanto a necessidade de maior sensibilidade histórica.
É importante reconhecer que o julgamento de figuras históricas deve considerar o contexto da época. No entanto, a documentação descoberta demonstra que Hans Asperger não apenas se adaptou ao regime nazista para sobreviver, como também compactuou ativamente com suas políticas de exclusão e eliminação.
Essa nova perspectiva convida a sociedade a refletir sobre a necessidade de revisar homenagens e sobre a importância de estudar a história de forma crítica e transparente.
O nome de Hans Asperger está, sem dúvida, profundamente entrelaçado com a história do autismo. Seu trabalho inicial foi importante para a identificação de características específicas dentro do espectro autista. No entanto, as revelações sobre sua colaboração com o regime nazista mancham sua reputação e levantam questões profundas sobre memória, ética e justiça histórica.
O reconhecimento da verdade é um passo essencial para honrar, de fato, as vítimas de regimes opressores e para garantir que a ciência caminhe lado a lado com a ética e o respeito à dignidade humana.